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  1. Au revoir, Madame Sion

    Wednesday, September 26, 2007

    Sempre que chega esta época do ano, me lembro de Madame Sion. Já publiquei este texto aqui no blog e o apaguei, junto com a limpa que eu fiz no início deste ano. Republico em honra ao aniversário de morte dela, que, embora eu não saiba datar precisamente, faço questão de lembrar todos os anos.


    A primeira vez que a vi foi numa tarde de sexta-feira, enquanto eu experimentava maneiras de se carregar uma bandeja, tentando encontrar a forma mais confortável e, ao mesmo tempo, mais graciosa de lidar com aquele objeto redondo que, pela falta de prática, me parecia tão hostil.

    "Ela chegou." Sussurrou, assustada, a copeira - e lembro que achei estranho o seu tom de voz, já que, normalmente, a aterrorizada era eu.

    Ela chegava sempre pela porta lateral, distribuía boas tardes como uma rainha que acena para os seus súditos. Tinha no olhar algo de reprovação para o mundo de hoje, parecia querer nos ensinar a viver, como ela havia vivido. E mostrava isto preservando os modos e hábitos de uma época em que as pessoas andavam mais devagar e se esforçavam mais para ouvir o que os outros tinham a dizer, trazendo consigo a lembrança de que as coisas em seu tempo foram diferentes e que, apesar de tudo, ainda existe lugar para a delicadeza.

    Aos poucos fui aprendendo a sua dançaa e depois de alguns dias já praticávamos um pas-de-deux silencioso (guiado magistralmente por ela) como bailarinas que guardam a
    confiança e cumplicidade de anos de convivência. O ato começava perto de cinco horas. Arrastar a mesa seis, reposicionar o abajour, afastar as cadeiras. Era meu dever preparar o palco. Eu esperava o tempo necessário para que ela se acomodasse na mesa, levava o cardápio e, embora já soubesse de cor, aguardava atenciosa o pedido: “Um Earl Grey, por favor."

    Sempre devidamente maquiada e vestida, levava a tiracolo o Le Monde, ou alguma publicação francesa, para ler enquanto eu preparava a sua bebida. Garrafa térmica, xícara, leite, sachê de chá e o açúcar que, apesar de saber que ela não usaria, eu levava assim mesmo, só para vê-la afastando o recipiente e me lançando um olhar de doce reprovação como quem diz "eu não adoço o meu chá, você ainda não aprendeu?". Era a minha pequena intervenção naquele ballet que ela havia inventado e dançado com tanta gente antes de mim.

    Terminado o chá, ela se levantava para ir ao banheiro, e era justamente nesse minuto que o simpático e fiel motorista surgia em cena, me deixando sempre impressionada pelo timing perfeito. Mais do que habituado ao ritual e preservando um bom humor invejável, como se fizesse aquilo tudo pela primeira vez, ele esperava paciente o retorno da madame na mesma porta lateral por onde ela havia entrado. Estedia-lhe o braço e a acompanhava até o carro.

    E nos despedíamos certas de que tudo ia se repetir no dia seguinte, exatamente como havia sido feito no dia anterior e no dia antes desse, estando eu lá ou não, porque ela era a senhora daquele espetáculo. E, mesmo nunca tendo trocado uma palavra além do estritamente necessário com ela, sempre vou sentir saudade do chá das cinco com Madame Sion.

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